por Maurício Santoro

“Todo escritor respeitável deveria ter um biógrafo inglês”, observou García Márquez. 
Edwin Williamson, que leciona literatura na Universidade de Oxford, ilustra o princípio. Sua 
estupenda biografia  do escritor argentino Jorge Luís Borges mostra um autor apaixonado e  engajado politicamente, muito distinto do retrato habitual do homem  perdido entre bibliotecas, labirintos, tigres e espelhos.
Borges teve longa vida (1899-1986), mas só conquistou fama  internacional na velhice. Williamson divide sua produção artística em  três etapas: a primeira é marcada pelo nacionalismo cultural e pelos  vínculos com as vanguardas europeias; a segunda caracteriza-se pelo  ceticismo e pessimismo, com forte influência de Franz Kafka; a terceira é  de certo retorno da paixão juvenil. Em todas, Borges destacou-se por  romper com a visão de que a arte deveria ser espelho da realidade,  considerando-a como um mundo em si mesma e elaborando gêneros  considerados inferiores, como romance policial, de aventuras, fantasia e  ficção científica.
O escritor nasceu em Buenos Aires, em família de herois da  Independência – seus dois avôs foram coronéis nas guerras contra a  Espanha – mas que perdeu poder e prestígio para a nova elite dos  estancieiros. A mãe de Borges, Leonor, era obecada em restaurar a  grandeza de seus antepassados e esperava que o filho fosse o instrumento  dessa vingança social. O pai, Jorge, era um literato frustrado, boêmio  que ensaiou rebeliões contra a ordem vigente, e sonhava que o herdeiro  completasse o que começou. Borges foi sempre dividido entre esses  opostos,  situação que Williamson chama de “dilema entre espada e  punhal”, no qual “ambos eram reações ao mesmo medo: o de ser desprezado,  de perder o senso de identidade, de não ser ninguém.”
“Se eu tivesse que indicar o evento principal da minha vida, diria  que é a biblioteca de meu pai”, escreveu Borges. Embora o filho não se  destacasse nos estudos – era demasiado tímido, gago e míope, intimidado  pelas outras crianças e nunca terminou o ensino médio – foi desde cedo  um leitor voraz. Por sete anos a família viveu na Europa, principalmente  na Suíça, onde o pai foi fazer um tratamento de saúde por conta da  catarata que lhe tirava a visão. A estadia europeia coincidiu com a  eclosão da I Guerra Mundial e o jovem Borges fez várias amizades nos  círculos de vanguarda artística. De volta a Buenos Aires, tornou-se por  algum tempo o líder de um grupo semelhante na capital argentina,  defendendo nacionalismo cultural e identidade própria ao país,  rejeitando visões de “submeter-se a ser quase norte-americano ou quase  europeu, sempre quase outro”. Fundou revistas, publicou poemas e  ensaios. Parecia no curso de uma brilhante carreira literária, mas seus  problemas emocionais o lançaram em depressão e quase no suicídio.
Borges era infeliz e arredio com as mulheres. Uma iniciação sexual  fracassada com uma prostituta em Genebra o traumatizou por anos. Em  Buenos Aires, viveu uma sucessão de romances desastrosos, em especial  com sua prima Norah Lange, beldade ruiva que ascendia como escritora e o  trocou por um rival na literatura, Oliverio Girondo. O caso com Norah  não era conhecido em detalhes, mas Williamson levantou dados  importantes. Ela inspirou obras clássicas de Borges, como os dois  “English Poems” e o conto “O Aleph”. Além dela, outras paixões  fulminantes foram com Haydée Lange (irmã de Norah) e com a escritora e  militante comunista Estela Canto.
O rompimento com Norah, em 1929, deixou Borges 14 anos sem escrever  poesia, e seu estilo de prosa passou a ser mais sombrio, como nos  magníficos contos reunidos em 
Ficções.  A política também contou. O jovem escritor era ativista da União Cívica  Radical, que propunha reformas contra a oligarquia que dominava a  Argentina e foi afastado do poder após o golpe militar de 1930, que  introduziu a “década infame”, de governos conservadores apoiados nas  Forças Armadas e nas fraudes eleitorais. Borges se rebelou contra essas  práticas, defendendo a democracia e envolvendo-se até em brigas de rua.  Em 1943 houve outro golpe, que culminou na ascensão do coronel Juan  Domingo Perón. Borges o via como versão local dos tiranos fascistas e  não reconhecia suas importantes políticas sociais. Nos anos 50, apoiou a  ditadura que depôs Perón, acreditando que a democracia era inviável na  Argentina. Data dessa época o conto “Ragnarok”, no qual multidão invade a  universidade deixando rastro de destruição apocalíptica.
Borges teve apenas empregos em horário parcial como jornalista e  tradutor até  completar 40 anos, quando seu pai morreu, e obteve então  modesto posto como bibliotecário. Os peronistas tentaram transferi-lo  para a função de fiscal de aves no mercado municipal, mas ele demitiu-se  em protesto. Após a queda de Perón, foi nomeado diretor da Biblioteca  Nacional e professor de literatura na Universidade de Buenos Aires.  Começou um período  tranquilo em sua vida, apesar do rápido avanço da  perda de visão: “Eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua  literatura, e essa literatura me justifica.” Sua rotina era dominada  pela mãe, que o chamava de “menino” e os dois eram às vezes confundidos  com marido e mulher.
O ponto de virada foi 1961, quando ganhou o International Publishers´  Prize. Foi o início da fama global, virando ícone cultural citado pela  Nouvelle Vague e 
Rolling Stones. A ironia é que Borges estava  em seu período mais conservador, dizendo que a democracia era “uma  superstição” e elogiando as ditaduras militares na Argentina e no Chile.  É provável que isso tenha lhe custado a chance de receber o Nobel de  Literatura, mas “Borges achava que era vergonhoso esconder suas crenças  políticas para ganhar um prêmio.”
O que mudou sua vida, novamente, foi o amor. Em 1967 ele teve breve  casamento com Elsa Astete, viúva com quem tivera flerte na juventude.  Dona de casa na província de Buenos Aires,  sentiu-se deslocada no  ambiente de intelectuais cosmopolitas do marido. Borges começou uma  nova, longa e surpreendemente bem-sucedida relação com María Kodama,  quarenta anos mais jovem do que ele e sua aluna na universidade. Kodama  às vezes desperta reações tão fortes como as de Yoko Ono, mas Williamson  lhe traça retrato simpático, afirmando que foi fundamental para dar  afeto e serenidade na década e meia que passou ao lado de Borges. Nesse  período ele apazigou muitos dos seus fantasmas e retomou a militância  política, desta vez defendendo a democracia e criticando a ditadura  militar argentina e a guerra das Malvinas. Ao ser diagnosticado com  câncer terminal, optou por ir morrer na Suíça, em elogio à tolerância  que caracteriza a cidade de Genebra.
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Borges: Uma vida ::: 
Edwin Williamson (trad. Pedro Maia Soares) :::
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Cia. das Letras, 
2011, 
664 páginas